Os meus pupilos do exército não são melhores nem piores que os outros são os meus. São a casa que me viu entrar com 10 anos depois de provas prestadas. Provas essas em que como sempre não dei o meu máximo físico e que apenas as minhas aptidões escritas e matemáticas da altura compensaram. Meses antes de entrar foi um dos médicos de então que fez ver aos outros que apesar do meu olho "danificado" conseguia ver as cores básicas e assim começou a aventura. A primeira camarata, a primeira noite em branco a ouvir os comboios. Hoje são memórias distantes de 23 anos, mas que ainda hoje fazem vibrar o meu coração e alma. Nesse ano o 453 queimou ao dormir com o aquecedor o meu primeiro capote e a peça de eleição de toda a farda. Conhecer companheiros novos não foi dificil, dificil é mantê-los todos ao fim de tantos anos. O companheiro de beliche era o Saldanha, que uma vez caiu e ficou a dormir em cima do tapete. Lembro-me das quarta-feiras e trazer o MArco e o Ricardo Marinho para minha casa. Viviam longe e a minha mãe quase os adoptou. Curiosamente tanto um como o outro nunca mais os vi desde que prematuramente deixaram os pupilos. No ano seguinte ganhei o irmão mais velho que me guiou incolume ao 12º ano. Com ele comecei a fumar, com ele aprendi a gostar de basket, com ele evitei castigos mais severos por assaltar o refeitório e o corpo de alunos, depois de umas valentes cigarradas nos claustros e na sala de ciências. Numa dessas noites alguns foram apanhados, por não serem precavidos e astutos como o Rui. Lembro-me dos imensos domingos em que com o Silveirinha lá iamos na traseira da Renault Express do trabalho do meu pai de volta ao internato. Ficávamos junto à igreja para que não nos vissem sair da traseira da carrinha. Ao longo dos anos nos Pupilos fui criando sonhos e ilusões alentado pelas listas de estágios que o 3º da contabilidade apresentava em um qualquer momento. Mars, Philips e empresas assim. O emprego estava garantido. Foi nos Pupilos que percebi que ser mecânico obrigava a não esborratar com tinta da china o desenho, por isso a opção contabilidade foi tomada cedo. As aulas práticas com o querido professor Correia ofuscavam as de mecânica que de bom tinham não haver luz natural depois das cinco. Com isso ganhavam as torradas no bar com o meu companheiro Mamede.
Fui crescendo, fazendo-me menos menino da mamã, mas não menos introvertido e envergonhado. Não menos embaraçado com a minha particular forma de ser. Vieram os chumbos do ano da frente e fui acolhendo no meu coração os mais velhos. Alguns acabaram por estar pouco tempo e a ligação não se criou, outros ainda hoje perduram como os meus maiores amigos e de quem, apesar das saudades, não sou capaz de visitar graças à minha mais uma vez forma de ser. A casa ridente nunca me tratou mal na verdade. E até me acolheu em alturas menos boas como a morte do meu avô e aquele dia em que feito puto estúpido, falei mal com a minha mãe para ir fumar cigarros. A casa na hora me corrigiu. Acendi o cigarro e no rádio tocou a música dos Roxette vulnerable. Depressa chorei, não sei porquê. LAvei os dentes e vi o resto da cerimónia com a minha mãe. Arrependimentos tenho dois: ter traido o Carrudo e não ter aceite ser graduado e ter batido no Melgaço. Sei que por vezes fui chato, levado pelo poder de ser mais velho, mas na verdade só bati a sério no Melaço a quem devo um pedido de desculpa, mesmo que os argumentos fossem válidos e ele tivesse "aceite" o castigo pedindo desculpa. Quanto ao resto, o resto é um mix de sentimentos e memórias. De histórias quase sempre partilhadas ou de outros. Posso dizer que passei sempre ao lado das grandes histórias e loucuras e excepto as saidas às quinta-feiras para o Alcântara saltando os muros podem ser consideradas traquinices. O resto são histórias de directas, de jogos, de testes adquiridos de forma menos, diga-mos lícita, mas tudo em grupo. Tudo como turma. É engraçado pensar que há pessoas que nem falo ou vejo durante anos e que foram os primeiros companheiros de secretária como o Begas, ou os primeiros companheiros de conversa como o Tinoco e o Pinão. É engraçado porque me recordo de todos e no entanto há tantos e tantos em que sinto que o único laço que tenho é o de ter estado no mesmo sítio e há mesma hora.
Nesta casa tive três padrinhos e nunca fui padrinho de ninguém. Protegi alguns em detrimento de outros, mas o apego às pessoas serve-me sempre de desculpa para um shutdown, para uma distância para não me magoar. Curiosamente foi esta casa que me ensinou a melhorar esta técnica. Não que a casa tenha culpa, deu-me foi uma técnica contra a saudade exagerada. Aprendi a viver sozinho muito tempo sem a familia e isso ainda hoje me está marcado e colado à alma.
Custa-me hoje voltar àquela casa porque é o mesmo que voltar a sonhos perdidos, a esperança reduzida. Parece-me tão diferente aquela casa que apenas a farda e o edificio me parecem o mesmo. Vivi lá doze anos que adorava voltar a viver, mas sei que hoje a casa não é a mesma. Não poderá ser a mesma...agora há a playstation, há estigmas contra internatos há 10 anos de "vai fechar" que me levam a esconder nesta carapaça que tantas vezes usei e uso. Custa-me voltar a uma casa que não sinto minha. Há algo de diferente e não consigo viver com isso.
Tenho claro saudades deles, dos meus companheiros, amigos. Tenho saudades de chorar a cantar o hino da casa.
Esta casa que tanto me deu e pouco ou nada exigiu em troca. Esta casa que tanta boa gente prepara para a vida. Esta casa que raramente é reconhecida.
Os meus pupilos fazem dia 25 100 anos, 12 dos quais são meus. Os meus pupilos fizeram hoje a cerimónia militar com direito a missa e tudo. Mas os meus pupilos levam-me a ficar em casa hoje. A sofrer com as doces memórias. A chorar pelos tantos sonhos que tinha. Fico a pensar nos meus amigos que com certeza estão todos a almoçar juntos. Vemo-nos talvez na exibição da especial mais logo. Vemo-nos talvez no dia 25. No dia mais especial que esta casa me deu. O nervoso miudinho. Os ensaios. O brilho da farda com barretina e arreios.
A esta casa devo ainda um agradecimento final que é o meu filho e a vida que hoje tenho construida. Mesmo se alguns sonhos ainda pairam pelos corredores, pelas camaratas, a realidade não é má. É óptima quando se olha nos olhos do bebé Gonçalo.
Obrigado mãe e pai pelo grande esforço e dedicação.
É jacaré! Não!
É perdigão? Não?
Então o que é?
IPE IPE IPE
2 comentários:
Parabéns pelo texto!
Sou teu irmão dessa nossa casa e também sinto que vim dum lugar que já não existe e que não nos cansamos de ilustrar a quem não lá viveu como se fosse possível consegui-lo.
Abraço
Peço desculpa pelo lapso enorme de não ter visto este comentário a tempo. Sabes, já não sou assíduo nestas coisas. Se és de minha casa és sempre benvindo!
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